quinta-feira, 21 de abril de 2011

Filete de água fria

Angustiei. Tudo se pôs confuso e meu medo era temer. Angustiei.
Abracei a toalha seca, macia, fui pro chuveiro. A luz eu apaguei, a água eu deixei correr. Me despi e sentei sobre meu par de chinelos. A escuridão do banheiro iluminou-se com o passar das gotas d'água e minha vista acostumou. Um cubículo humilde, um banheiro, apenas um banheiro. A água caía quente, mas o filete frio desregulado que brotava lá de cima teimava em existir. A cabeça eu abaixei, entre joelhos molhados e a angústia primitiva. A água se pôs quente e minhas costas se acharam na parede e então eu confortei, e a água corria, e cada gota que caía era um pensamento que amolecia. Era tudo muito bom, mas o filete de água fria teimava em cair.

A SENSAÇÃO DO FILETE DE ÁGUA FRIA : era como se o chuveiro retrucasse a maldade que eu fazia ao querer que toda a água caísse macia, quentinha pra eu poder aliviar minhas dores não-físicas. Era como se ele quisesse me incomodar sutilmente, por ser o pior dos incômodos o sutil. E eu sabia que o filete existia e me incomodava. Contrariava meu propósito, me atentava para o desconforto do cubículo humilde. E toda minha preocupação raivosa pelo filete de água se fazia erótica quando fria a água me excitava e fazia com que eu quisesse estar ali entre águas quentes e gotas frias. A porra do filete de água fria.

A angústia que eu senti, dormiu em mim, e eu sentia o peso dela em meus braços, eu não queria pensar. Mas eu pensava na água que corria limpa pelo ralo, em cifrões antipáticos. Eu ali e o filete de água fria.
Dispensei a condição de manter uma postura mental. Mantinha uma postura física, retraída, aquecida pelo filete de água fria. Susurrei, como se eu seduzisse o piso que acomodava meus chinelos. Sussurrei que era a dor, o prazer que de fato sentia ao sentir calada o filete desgraçado de água fria.

RELAÇÃO EXTERIOR COM O FILETE DE ÁGUA FRIA : era como se eu sentisse na pele de uma maneira visível o que a vida me dizia. Era vinho a água quente, era sangue a água fria. O vinho que faz sorrir, a sociabilidade que existia, aos baldes escorria, o sangue que faz doer, que é temido pelo viver, aos poucos jazia. Era como se eu soubesse que diante do muito bom sempre tem o pouco ruim. E que diante do muito ruim deve haver o pouco bom. Meu silogismo era sensato?

Não deram minha falta, não dei a falta de nada. Eu não sabia se deixava quieto ou se me movia.
Saudades da história do filete de água fria.

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